Quarta-feira, 05.03.08

"Paira-me à superfície do cansaço qualquer coisa de áureo que há sobre as águas quando o sol findo as abandona. Vejo-me como ao lago que imaginei, e o que vejo nesse lago sou eu. Não sei como explique esta imagem, ou este símbolo, ou este eu em que me figuro. Mas o que tenho por certo é o que vejo, como se de facto visse, um sol por trás de montes, dando raios perdidos sobre o lago que os recebe a ouro escuro.

Um dos malefícios de pensar é ver quando se está pensando. Os que pensam com o raciocínio estão distraídos. Os que pensam com a emoção estão dormindo. Os que pensam com a vontade estão mortos. Eu, porém , penso com a imaginação, e tudo quanto deveria ser em mim ou razão, ou mágoa, ou impulso, se me reduz a qualquer coisa indiferente e distante, como este lago morto entre rochedos onde o último sol paira desalongadamente .

Porque parei, estremeceram as águas. Porque reflecti, o sol recolheu-se. Cerro os olhos lentos e cheios de sono, e não há dentro de mim senão uma região lacustre onde a noite começa a deixar de ser dia num reflexo castanho escuro de águas de onde as algas surgem.

Porque escrevi, nada disse. Minha impressão é que o que existe é sempre em outra região, além de montes, e que há grandes viagens por fazer se tivermos alma com que ter passos.

Cessei, como o sol na minha paisagem. Não fica, do que foi dito ou visto, senão uma noite já fechada, cheia de brilho morto de lagos, numa planície sem patos bravos, morta, fluida, húmida e sinistra."

 

                                                Excerto do "Livro do Desassossego"

                                                          Fernando Pessoa

 



publicado por mafalda às 22:07 | link do post | comentar

Segunda-feira, 03.03.08

"Fluido , o abandono do dia finda entre púrpuras exaustas. Ninguém me dirá quem sou, nem saberá quem fui. Desci da montanha ignorada ao vale que ignoraria, e meus passos foram, na tarde lenta , vestígios deixados nas clareiras da floresta. Todos quantos amei me esqueceram na sombra. Ninguém soube do último barco. No correio não havia notícia da carta que ninguém haveria de escrever .

Tudo, porém, era falso. Não contaram histórias que outros houvessem contado, nem se sabe ao certo do que partiu outrora, na esperança do embarque falso, filho da bruma futura e da indecisão por vir. Tenho nome entre os que tardam, e esse nome é sombra como tudo."

 

                                               Excerto do "Livro do Desassossego"

                                                                   Fernando Pessoa



publicado por mafalda às 21:16 | link do post | comentar | ver comentários (1)

Domingo, 02.03.08

"Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e o baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro.

Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do Livro de Job, "Minha alma está cansada de minha vida!""

 

                                        Excerto do "Livro do Desassossego"

                                                            Fernando Pessoa

 



publicado por mafalda às 14:09 | link do post | comentar | ver comentários (2)

mais sobre mim
Julho 2017
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
10
11
12
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30
31


posts recentes

livro do desassossego (pa...

livro do desassossego (pa...

livro do desassossego (pa...

arquivos

Julho 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2015

Junho 2013

Maio 2013

Dezembro 2011

Novembro 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

tags

"se"

2009

21 gramas

3 doors down

30 rock

30 seconds to mars

a arte de comer oreo's

a família addams

a importância de ter um blog

a walk to remember

adam gontier

adam lambert

adele

aerosmith

akon

alesha dixon

alison moyet

amanhecer

apocalyptica

ascenção e queda

audioslave

avril lavigne

bandas sonoras

barack obama

bella morte

bella swan

beyoncé

birthday

bjork

bombons chineses

chris brown

coisa de miúdos

coldplay

crepúsculo

dancing the dream

de cor e salteado

de mim para vocês

desafios

dido

doce novembro

eclipse

edward cullen

entre a morte e a vida

evanescence

fábrica de histórias

filipa

fingertips

futebol

guano apes

guns n' roses

haja paciência

him

inxs

james morrison

jared leto

joana

katie melua

lamb

lidia

linkin park

livro do desassossego

lua nova

lua nova trailler

maria fátima soares

meu blog na revista brasileira de música

mian mian

michael jackson

muse

música para os meus ouvidos

natal

natalie imbruglia

ne-yo

nelly furtado

nós

o estranho caso de benjamin button

o principezinho

o que aqui revelo é para ficar entre nós

pablo neruda

paulo coelho

pearl jam

pedro khima

pérolas

pink

placebo

que surpresa tão linda

quem quer ser bilionário

rilke

rita redshoes

saint-exupéry

seal

simple plan

stephenie meyer

system of a down

teorias da conspiração

the rasmus

tokio hotel

último post

vikas swarup

whitney houston

within temptation

todas as tags

favoritos

Quero-te

Insónia

É À NOITE

Esfera

Palavras

ESSES TEUS CINCO SENTIDOS...

É

Porque não pára o tempo?

Confiança

Alma

links
blogs SAPO
subscrever feeds